Queremos mesmo o aluno ideal, aquele arrumadinho, asseado e sem problemas, de preferência, nem de ordem familiar. É para ele que somos preparados, afinal de contas, preparamos nossas aulas pensando nele, planejamos (ainda fazemos isso?) nossas aulas para eles, fomos amestrados a esperar por eles, os seres perfeitos. Sabem a hora exata de calar e ouvir, pedem licença para levantar-se, possuem ótima higiene, agem com cordialidade e educação, organizam seu material de modo impecável, possuem extenso vocabulário, e nem de longe sonham em falar algum palavrão. Eis aí o aluno para o qual estamos preparados, eis o aluno dos nossos sonhos ou o aluno para o qual gostamos de preparar nossas aulas e distribuir fartamente os "nossos" conteúdos programáticos e montar nossos mega projetos educacionais. Eis o aluno para o qual entramos para esta profissão.
A vida real, a vida em sala de aula, todos os dias, no entanto, teima em contrariar o sonho que acalentamos. E no lugar dos alunos ideais, recebemos os alunos reais. Estes seres que surgem sem apoio familiar, sem base econômica sólida, com um vocabulário mais curtinho que perninhas de cobra, somados a uma energia fora do comum, que o faz inquietante, pois ele simplesmente desconhece rotinas ou horários e ainda não percebeu que "está na escola"!
O que fazer? É claro que, como professores que somos, temos um certo "faro" para a questão e de início já identificamos (não é mesmo?) os possíveis alunos reais (não são poucos). Partimos para a próxima etapa: precisamos saber se há algum com necessidades especiais, pois não é possível que "aquela criança seja normal"! Avaliações, observações, talvez necessitemos de um professor de apoio, afinal! Não conseguiremos "dar aula" com aquele camarada pulando e correndo, falando sem parar. A turma toda será prejudicada! O que fazer?
Passamos à observação minuciosa, afinal ele pode ter dislexia, disgrafia, disortografia e tantas “dis” e “ias”... Nossa, ele pode ter muitas coisas! Chamamos a família, que no geral ou não vem, ou vem e julga completamente normal o que achamos anormal.
Estamos começando a ficar atônitos quando nos vêm a mente a idéia de uma avaliação. Após a mesma, poderemos ter mensurado quem ficará com quem. Estão formados os grupos! Respiramos aliviados. Podemos iniciar o trabalho deste ano letivo! Os fortes, geralmente com maiores oportunidades de contato com materiais impressos, meios de comunicação ou pais com maior nível de escolaridade, poderão ter acesso a conteúdos mais avançados, enquanto os mais fraquinhos, geralmente oriundos das mais pobres famílias, com menos escolaridade, poderão ficar também, juntos e com isso, não irão atrapalhar o andamento dos alunos mais fortes, o real alvo de nossas aulas.
A partir de então, passamos a planejar para aquele primeiro grupo. Provas e planejamentos serão pautados em seu nível, logicamente superior. Aos demais, restará o tempo que restar. E redundo, propositadamente, como que para imprimir minha indignação. Os que mais necessitam serão os que menos receberão. E a menos que tenham um insight ou contem com apoio externo, estarão relegados a subsistir, durante todo o ano letivo, dos restos dos "mais fortes".
Não pense, professor, que escrevo como quem nunca viveu isso na pele. Escrevo como quem viveu e vive todas essas angústias de sala de aula, que o governo ou quem quer que esteja sobre o carpete e respirando ares gélidos em suas salas cheirando a aromatizante floral tenha se dignado a pensar. Escrevo penalizada, mais que pelo professor abandonado à própria sorte, lutando contra o tempo corrido entre duas ou mais escolas, pelo aluno relegado ao segundo plano. Aluno para o qual se deveria planejar, arduamente, no qual se deveria pensar seriamente e cuja defasagem não será resolvida no “A babá é boa.”, porque para ele nunca existiu uma babá e ela tampouco poderia ser boa!
Se “o coco caiu”, ele não viu, se “o boi bebe e baba” fez isso bem longe da sua janela. E ele segue copiando. Enquanto copia, não anda. Enquanto copia, não pensa. Enquanto copia, não perturba o silêncio necessário. A cópia é a placa de "do not disturb" pendurada. Mas a placa está virada para ele, é para ele o alerta: “Ei, psiu! Aqui tem gente que pode chegar lá! Copie e não perturbe, fique em silêncio, você não vai entender nada mesmo! E eu preciso sobreviver a esta aula e estar viva amanhã”.
Sabe? Vou terminar este texto correndo um sério risco de ser odiada. Estou começando a me acostumar com isso. Nasci amando a educação e preciso fingir todos os dias que não sei fazer a educação acontecer simplesmente para agradar a alguns. Nós, professores apaixonados, sem o menor romance e falando seriamente, chegamos num ponto em que suspiramos e somos sufocados pelos menos apaixonados que nós. Simplesmente não suportamos a idéia da rejeição, a idéia de saber que todo o grupo julga execrável gastarmos algumas horas programando festas, projetos, leituras, textos ou atividades. Precisamos até mesmo camuflar nosso discurso, tentar falar um pouco errado, quem sabe trocar ou engolir fonemas ou letras para agradar um pouquinho, tentar parecer um pouco normal. Todo o nosso alienado amor à educação mal remunerada nesse país vai contra o antigo regime do "finge que ensina e eu finjo que lhe pago". E então fica terminantemente proibido gostar de educar. E lembro-me dos meus 12 anos, quando alfabetizei as crianças que moravam na minha rua. Naquela época, brincávamos de escolinha no quintal de casa, até que meu pai, que era marceneiro, decidiu fazer uma grande mesa de madeira e algumas cadeiras. Pregou um quadro e pronto, não havia outro local em que eu quisesse ficar! Os pais das crianças começaram a surgir, e de repente a sala estava repleta de alunos. Lembro-me deles até hoje, foi um tempo sem métodos ou pedagogia, porém pautado no completo amor e na certeza de que era aquilo que eu gostaria de fazer, pelo resto da minha vida. A Universidade, a Pós-graduação, tudo isso servirá apenas para ganharmos um aumento no contracheque. A formação resume-se a cursos equivalentes ao aumento recebido. Nada mais.
Recebo diariamente milhares de e-mails de professores de todo o Brasil agradecendo pela ajuda prestada pelo [Blog] “Espaço Educar”. E este fato me faz crer que ainda há os que amam o que fazem. Posso citar uma lista interminável dos que buscam fazer o melhor, dos que tentam, apesar do chão batido e da falta de lápis, água, giz, carteiras. Isso me faz acreditar, me faz seguir em frente. E me faz sim, terminar o ano de 2010 acreditando que 2011 será melhor! E são todos os e-mails de vocês, todas as visitas (estamos chegando a 20 milhões!) que me fazem entender que existem possibilidades de melhora, de mudança! Não posso crer que a educação seja unicamente voltada para o lucro da venda de livros ou coleções, não posso acreditar que os professores acalentem o sonho da riqueza material através de seu trabalho árduo. Também não creio que possam atravessar anos a fio como que num mundo de faz de conta.
Certa vez, escutei de uma colega de profissão que "eu vivia no mundo de Alice no país das maravilhas", no "mundo da Barbie"; simplesmente porque minha sala de aula era colorida e alegre. Simplesmente porque eu gastava algum tempo utilizando o material que a escola fornecia fartamente, para tornar o ambiente deles melhor, para planejar atividades melhores para a minha turma! Acho que isso a incomodava, visto que sua sala permanecia completamente em branco, dias a fio sem nenhuma novidade. Compreenda-se: Eu a respeitei, respeitei seu modo de fazer nada, enquanto que ela não suportou respeitar meu modo de fazer tudo, e fazer sorrindo, meu modo de ser feliz educando e fazendo acontecer. Eu a incomodei! Professores, estejam preparados, porque além de turmas heterogêneas, vocês precisarão lidar com uma classe mais heterogênea ainda: a dos profissionais da educação! Que, ao invés de unirem-se em prol de uma educação melhor em favor de nossos alunos, decidem se unir uns contra os outros! Profissionais que deveriam admirar o trabalho bem feito que favorece o aprendizado, mas ao invés disso, julgam execrável alguém amar sua profissão e fazê-la acontecer com carinho, sem necessidade de pressão de diretor ou coordenador. Pessoas que se julgam capazes de educar e simplesmente não se educam a si mesmas.
Que venham as turmas heterogêneas, porque é na diferença que aprendemos! E que tal misturar ao invés de selecionar? Que tal permitir que troquem idéias, que sanem dúvidas uns com os outros? Que troquem figurinhas? Que tal trocar a cópia por temas reflexivos, anotações pertinentes, ilustrações criativas, exposição de idéias diferentes, que somadas, acrescentam? Que tal perder tempo para ganhar? E ter a ousadia de tentar fazer algo diferente, a despeito do professor ao lado? Se ele pode te rotular de louco, o inverso também é verídico, ele também pode ser louco por ter escolhido uma profissão que não ama, por sofrer ao realizar todos os dias um ofício que, sem dúvida, renega... Ora, por que precisamos agradar? Por que nossos alunos precisam ser ensinados, amestrados a agradar também? Já chega de parecermos menos, apenas para que os que nos julgam loucos pareçam normais! Já chega de tentarmos esconder o que somos e o que sabemos, o que lemos, o que queremos, em prol de gente que não dá a mínima, que quer mais é o feriadão. Exatamente por isso os medíocres dominam, pelo silêncio dos competentes. Exatamente porque quem deseja fazer se permite ficar subalterno a quem nem ao menos sabe planejar uma aula. E é preciso conviver todos os dias com a cara de mal-humor da supervisora que, insatisfeita com o marido e com a vida familiar, precisa descontar no primeiro que cruza o seu caminho! Assim caminha a educação... Com ironias mil, palavras dúbias, teatros de marionetes, reuniões forjadas, papos de corredor, fofocas de cozinha. E o pior: continuamos sonhando com mudanças e melhorias de salário. Desunidos como estamos, não merecemos mesmo valorização. Merecemos os pseudo-planos provisórios que se sucedem. Merecemos os projetos milionários de caixa 2 que precisamos engolir. Porque ainda julgamos que quem é superior precisa ocupar um cargo de direção escolar ou coordenação escolar. Porque ainda acreditamos que o professor não é superior em nada, ao contrário, o dia em que se mostrar superior, será retirado da sala de aula para uma funçaõ mais digna de seu Q.I.
Pasmo e choro! Por que não podemos ter bons professores em salas de aula? Se é exatamente ali que reina a necessidade? Por que para ser bom o professor precisa ser convidado a fazer parte da equipe X, da secretaria X, no gabinete Y? Principalmente com o acessoramento de um forte político que consiga dar uma mãozinha.
Não consigo compreender essa engrenagem. Não consigo sequer iniciar um prenúncio de entendimento racional do que seja educação séria em meio a esse caos, a essa filosofia que maldosamente se implantou no seio da educação, neste país. E calo. Calando, talvez consiga começar a compreender. Cada um em seu tubo de ensaio, cada qual participando da experiência amarga de tentar fazer a educação dar certo, num país onde os ingredientes químicos estão equivocados e a mistura consequentemente, não irá funcionar. Cada qual isolado em seu tubo, Narciso vendo a própria imagem no vidro, pelo lado de dentro, ouvindo o eco da própria e melodiosa voz.
Não acho que alguém lerá esse texto por completo. Mas afirmo que essas são apenas algumas das indagações que me faço diariamente. E sempre que digito, tenho a latente sensação de que em meu teclado faltam teclas, de que ainda não inventaram o vocábulo que eu desejaria usar. Termino sempre como se não houvesse começado, assim, ainda consciente de que falta tanto, tanto por fazer, e continuamos investindo nos locais errados, e perseguindo ideais divergentes, que sempre nos levam a esse enorme vazio constantemente preenchido pelo não essencial, o que o torna tremendamente mais vazio ainda, implorando por algum significado.